Muito se repete no universo da gastronomia que “a técnica liberta”. A frase, à primeira vista, pode soar incoerente, mas carrega uma verdade fundamental para quem cozinha, ensina ou aprende a cozinhar.
A técnica é o alicerce. É ela que organiza o pensamento, orienta decisões e confere segurança ao cozinheiro. Quando se compreendem o método, os padrões e a função de cada etapa, deixa-se de apenas reproduzir receitas para conquistar autonomia — o que possibilita adaptar, diversificar e criar com responsabilidade.
No Brasil, há inúmeros exemplos de produtos que se sustentam justamente pela aplicação precisa da técnica, ainda que profundamente ligados à tradição. O pão de queijo mineiro, por exemplo, exige conhecimento rigoroso do ponto da massa, da correta hidratação do polvilho e da relação entre queijo e gordura. Sem domínio técnico, o resultado varia drasticamente. O mesmo ocorre com a tapioca nordestina: simples na aparência, mas dependente do manejo adequado da goma para atingir textura, elasticidade e sabor.
Foto: Amandha SilveiraExistem, ainda, preparações que atravessaram gerações graças à repetição criteriosa do método. Pense no acarajé: a escolha do feijão-fradinho, o tempo de demolho, a retirada da casca, o ponto da massa e a temperatura do azeite de dendê não admitem improvisos sem comprometer o resultado. A tradição, nesse caso, é técnica aplicada com rigor e constância.
Costuma-se romantizar a ideia de que grandes produtos nasceram do erro. O discurso é sedutor, mas incompleto. Nem todo erro gera um acerto, e confiar apenas no acaso raramente conduz à excelência. O aprimoramento na gastronomia ocorre no processo contínuo de testar, avaliar, corrigir e refazer — sempre com a técnica como referência.
Na cozinha brasileira contemporânea, muitos chefs vêm ressignificando ingredientes regionais justamente por dominarem os fundamentos. A mandioca, o milho, o feijão, os peixes de água doce e as frutas nativas ganham novas leituras não por ruptura com a tradição, mas por profundo respeito aos seus princípios.
Valorizar a técnica não significa engessar a criatividade. Ao contrário: quanto mais sólida for a base, maior será a liberdade. Cozinhar bem não é confiar no improviso constante, mas compreender o método para transformar conhecimento em identidade e consistência em excelência.
Recentemente, em entrevista, o chef Laurent Suaudeau — referência na formação de cozinheiros no Brasil — trouxe uma reflexão importante sobre o tema. Ao ser indagado sobre o uso de ingredientes regionais no menu de um restaurante piauiense, destacou que não se compara às cozinheiras e aos cozinheiros locais, que conhecem profundamente seus produtos e trabalham com eles há gerações. Sua colocação reforça um ponto essencial: o saber tradicional é, por si só, uma forma de técnica consolidada pelo tempo.
Suaudeau também ressaltou que, a partir da aplicação consciente da técnica e do método, esses mesmos ingredientes podem ser trabalhados sob outra ótica, adquirindo nova identidade.
Não se trata, portanto, de substituir a cozinha regional, mas de reinterpretá-la, respeitando sua essência e ampliando suas possibilidades expressivas. É nesse equilíbrio que a gastronomia evolui. A técnica não existe para apagar a identidade de um ingrediente ou de um território, mas para oferecer ferramentas que permitam leitura, adaptação e transformação com coerência.
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Por Amandha Silveira
Gastróloga, Sommeliére e colunista de gastronomia
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