Você já se perguntou por que brindamos antes de beber, ou por que posicionamos cuidadosamente o garfo à esquerda e a faca à direita? Esses gestos cotidianos, que muitos repetem quase automaticamente, são rituais que carregam séculos de história, simbolismo e transformação. À mesa, nada é por acaso — cada detalhe reflete a forma como a humanidade moldou sua relação com a comida, com o outro e consigo mesma.
Na Europa medieval, comer com as mãos era não apenas comum, mas amplamente aceito — um hábito arraigado, até mesmo entre a nobreza. O uso de talheres, especialmente do garfo, era raro e muitas vezes visto com maus olhos. Curiosamente, o garfo despertava desconfiança por sua forma semelhante à de um tridente, o que o tornava, aos olhos de muitos, um objeto impróprio, quase profano, em desacordo com os valores cristãos que moldavam a cultura da época. Considerado uma excentricidade de origem oriental, ele levou séculos para ser aceito à mesa europeia.
Foto: Amandha SilveiraFoi somente durante o Renascimento, com a influência das cortes italianas e sua busca por elegância e refinamento, que o garfo começou a ganhar prestígio. Catarina de Médici teve papel importante nesse processo: ao se casar com o futuro rei da França, Henrique II, levou consigo os hábitos da corte florentina — entre eles, o uso do garfo. A partir de então, o utensílio passou a ser gradualmente associado à sofisticação, à higiene e à civilidade, marcando uma mudança duradoura nos costumes à mesa.
O guardanapo, hoje sinônimo de boas maneiras, também tem uma origem prática: limpar as mãos e o rosto durante a refeição. No entanto, ele rapidamente foi incorporado ao código de etiqueta como um sinal de hospitalidade. A forma como o colocamos no colo, o jeito de dobrá-lo ao final da refeição — tudo comunica. Mesmo um gesto tão simples pode transmitir respeito, acolhimento ou descuido.
Já o brinde, presente em mesas do mundo inteiro, surgiu de uma necessidade mais defensiva do que festiva. Na Antiguidade e na Idade Média, bater as taças com força — a ponto de fazer o líquido de uma saltar para a outra — era uma demonstração de confiança - uma forma de garantir que a bebida não estava envenenada. O gesto, com o tempo, perdeu seu sentido literal, mas manteve seu simbolismo. Hoje, brindar é desejar saúde, sorte, prosperidade — é partilhar um instante de conexão antes do primeiro gole.
Foto: Amandha Silveira Esses rituais à mesa não são meras formalidades sociais. São códigos que refletem valores culturais, crenças religiosas, transformações políticas e até disputas de poder. Comer junto sempre foi um ato político e simbólico. Sentar-se à mesa com alguém, em muitas culturas, é um gesto de confiança, de paz — uma maneira de construir ou reforçar laços. Afinal de contas, como sempre digo, você não chama qualquer pessoa para sentar-se à sua mesa, não é?
Comer é um ato cultural. E entender os rituais à mesa é mais do que dominar boas maneiras: é transformar o ordinário em extraordinário, o cotidiano em celebração. É por isso que costumo dizer que etiqueta não deve ser vista como um conjunto rígido de regras, mas como um conjunto de orientações para a convivência social harmoniosa. A ausência de códigos compartilhados pode transformar um momento coletivo em caos. A etiqueta — no melhor sentido da palavra — é uma ferramenta que ajuda a tornar a convivência mais leve, respeitosa e agradável para todos.
Por Amandha Silveira – Gastróloga, Sommeliére e colunista de gastronomia
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